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Filha do coração: o que a adoção ensina sobre amor, coragem e recomeços

  • Foto do escritor: Isabel Debatin
    Isabel Debatin
  • há 14 horas
  • 6 min de leitura

Ilustração da minha família (imagem criada com o auxílio de Inteligência Artificial)


Nem toda história começa no nascimento. Algumas começam no reencontro. A minha começou aos 1 ano e 8 meses, quando a vida — ou talvez Deus — decidiu que eu teria uma nova chance.


A adoção nunca foi um segredo na minha casa. Eu e minha irmã fomos adotadas com seis anos de diferença: ela em 1987, eu em 1994. Ela é a terceira, e eu, a filha mais nova entre quatro irmãos. Desde sempre, nossos pais os contaram nossa história de forma muito amorosa e prática. Sem mistério, sem rodeios. A adoção era um tema acolhido, falado com naturalidade, conversado entre nós conforme crescíamos — às vezes em conversas profundas, às vezes em comentários casuais.


Sempre houve espaço para sentimentos, dúvidas, curiosidades. Por isso, eu nunca senti vergonha de dizer que sou adotada. Pelo contrário: sempre adorei contar essa história. Sempre achei bonito — e formativo — ter vindo ao mundo dessa maneira.


Ainda assim, mesmo com acolhimento, quem é adotado carrega marcas. Eu fui adotada um pouco maior, com quase dois anos, e nessa idade, mesmo que a memória consciente não guarde imagens, o corpo e a mente registram o que foi vivido. Antes de chegar à minha família adotiva, passei por momentos de vulnerabilidade que moldaram quem sou. E, ao longo dos anos, fui entendendo que muitos comportamentos nossos são, na verdade, tentativas de suprir ausências antigas.


A adoção, para mim, nunca foi uma muleta para justificar dores, mas uma parte indissociável da minha história. Hoje, com maturidade, entendo que é possível honrar a história que me antecedeu sem deixar que ela me defina. Eu sou filha do coração — e essa é uma das belezas da minha vida.


Quando a adoção era simples — e quando deixou de ser


Conversar com a minha mãe, Márcia da Cunha, sobre nossas adoções me fez ver, com clareza, como o tempo e as leis moldaram o processo no Brasil. Quando ela e meu pai adotaram minha irmã em 1987, o procedimento era simples: um nome no caderninho da irmã Ivone (freira que trabalhava anum hospital da cidade), uma ligação poucos meses depois e, com um termo assinado diante do juiz, minha irmã já carregava o nosso sobrenome.


Quando chegou a minha vez, seis anos depois, tudo mudou. Ela conta que comigo, tudo foi diferente. "Buscamos você com um ano e oito meses. O juiz deu um termo de responsabilidade como família substituta. Sua mãe biológica tinha dois anos para tentar mudar de vida. Durante esse tempo, não podíamos mudar seu nome, nem garantir que você ficaria para sempre. O Conselho Tutelar vigiava, a assistente social passava na frente de casa. Só depois que sua mãe perdeu o pátrio-poder é que conseguimos adotar você de verdade. Foi difícil, mas Deus nos deu você pra sempre." contou minha mãe.


Entre a adoção da minha irmã e a minha, o Brasil passou a reconhecer com mais rigor os direitos da criança e do adolescente, especialmente com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990. Em 2009, a Lei Nacional da Adoção reforçou ainda mais essas proteções, tornando o processo mais criterioso. Minha mãe reconhece a necessidade dessas mudanças, mas também lamenta que, em meio a tantos requisitos, muitos lares amorosos desistam. "Hoje parece tudo muito complicado, ao meu ver. Tem casal que escolhe criança como se fosse catálogo: querem bebê, saudável, olho claro. E as crianças vão ficando. Eu só queria duas filhas pra amar."


O peso da espera — e a leveza do amor

Ouvir quem adota hoje é perceber que, mesmo com todas as melhorias, a jornada ainda é longa e cheia de desafios. Conversei com Erisângela de Araújo Simchak, mãe de duas meninas adotadas em 2021, e ela confirmou. "A parte inicial foi rápida. Mas depois, a transferência de comarca, as entrevistas, o Ministério Público... tudo é cansativo. Se não fosse o acolhimento do Fórum de Jaraguá do Sul, eu teria desistido."


A Eri também compartilhou algo fundamental: adotar nunca foi seu plano B. "Eu nunca quis gestar. Sempre quis adotar. E entendi, ainda mais depois de tentar engravidar sem sucesso, que minha maternidade era para acontecer de outro jeito. Amor não tem DNA. E não é caridade. Não é salvar ninguém. É só ser mãe."


Essa visão ecoa também nas palavras de Tálita Forlin Rincaweski, outra filha do coração que cresceu sabendo da sua história."Sempre soube que era adotada. Meus pais contavam com muito carinho, com uma história linda de que eu era um anjo que escolheu vir para eles. Para mim sempre foi natural. Quem tinha problema com isso eram os outros, muitas vezes, mascarados de comentários sutis."


Ainda assim, a Tálita lembra que existem microagressões que marcam. "Uma vez, ouvi alguém dizer que problemas de tal pessoa eram mais graves [do que os da família dela] porque eram problemas entre irmãos de sangue. Não falei nada, só fui embora. Mas essas pequenas falas, repetidas, doem."


Essa sensação de ser vista como diferente, mesmo sem intenção explícita, também ecoa no relato da Eri. Apesar da beleza de sua jornada de maternidade, ela faz questão de não romantizar a experiência. "Sofremos preconceito. Na escola, na sociedade e até na família. E isso é o que mais dói: a falta de empatia de quem deveria apoiar. Mas eu ensinei às minhas filhas que não precisam se justificar. Nem esconder. Se quiserem contar, que contem. Se não quiserem, que fiquem em paz."


Essa dor silenciosa, muitas vezes invisível para quem está de fora, reforça que a adoção vai além do amor: é também resistência, fortalecimento e a criação consciente de espaços seguros para que as crianças cresçam sem vergonha de suas histórias.


E quando questionam para a Tálita se ela tem interesse em buscar a família biológica, ela reflete. "Nunca senti vontade. Porque abrir essa porta é abrir para tudo — o amor e a dor. Eu agradeço pela vida que me deram. Mas a minha história é essa: a história de quem me amou e me escolheu."


Em meio a essas vivências, minha irmã, que também foi adotada, resume com simplicidade e profundidade o que sente. “Me sinto uma pessoa de sorte, por ter tido a oportunidade de ser escolhida e ter um futuro diferente da maioria. O amor e os laços vão muito além do sangue. Sou eternamente grata.”


Quando os sonhos esperam — e a espera se alonga


Infelizmente, nem todas as histórias de adoção têm finais felizes. Muitas crianças crescem em abrigos, esperando uma família que nunca chega. E os dados refletem essa realidade dura.


  • 34.641 crianças acolhidas no Brasil;

  • 5.186 disponíveis para adoção;

  • 5.940 em processo de adoção;

  • 1.389 em busca ativa (casos mais difíceis);

  • 33.520 pretendentes ativos.


Em Santa Catarina, a situação não é diferente:

  • 272 crianças disponíveis para adoção;

  • 71 delas têm mais de 16 anos;

  • 57 têm entre 14 e 16 anos.


Mais de 65% têm mais de 10 anos. A maioria com histórias de perdas, doenças, irmãos para adotar junto. Enquanto isso, a maioria dos pretendentes ainda sonha com bebês recém-nascidos. Hoje, o processo de adoção é ainda mais estruturado. Embora burocrático, ele visa proteger. Proteger de devoluções, de abusos, de descuidos. Porque nem toda família acolhedora acolhe.


Existem casos dolorosos de crianças que, após serem retiradas de famílias biológicas por abuso, sofreram novamente abuso na família que deveria protegê-las.


Imagina o que se passa na cabeça de uma criança que já foi ferida uma vez — e é ferida de novo. Imagina o luto de ser separada dos irmãos. O luto de ser devolvida, como se fosse possível devolver um amor que mal teve tempo de nascer. Muitas crianças passaram por mais de uma dor antes de encontrar um lar de verdade.


Esse abismo entre o desejo e a realidade precisa ser enfrentado. Com políticas públicas, campanhas de sensibilização e, acima de tudo, com uma mudança no olhar sobre o que é, de fato, construir uma família.


Uma causa — e uma data — para lembrar e refletir


No Brasil, o 25 de maio é o Dia Nacional da Adoção. Uma data que não deve ser apenas celebrada, mas também encarada como um convite: repensar nossos conceitos sobre família, infância e pertencimento. Oferecer recomeços. Construir pontes de amor.


Nem toda família nasce do sangue. Algumas nascem da escolha. Da coragem de amar sem garantias. Da decisão de permanecer, de cuidar, de construir uma história a partir de encontros que a vida desenha.

Toda criança merece um começo digno, um meio acolhedor e uma chance real de final feliz.


Espero que você tenha gostado desses relatos, das histórias e da análise que fizemos sobre a adoção!



Um abraço carinhoso,

Isabel Debatin



Fontes:

Adoção Brasil (2024) | Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA/CNJ 2024)

 
 
 

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